Um conto atrasado de dia dos namorados (3ª parte)

05/08/2015 00:27

Maria Clara recolheu-se a poucas palavras. Normalmente era do tipo de pessoa diplomata e que dificilmente recusava qualquer conversa, mas aquela era perfeitamente dispensável. O homem começou a sentir-se constrangido, e não podia tirar a razão da jovem. Saiu do quarto por um instante devido ao chamado do médico e pediu para que o filho o esperasse. O rapaz por sua vez, mal tirava os olhos do celular, parecia ter esquecido do mundo que o rodeava, mas ainda sentia os calafrios provocados pelo olhar de inquisição da paciente, tanto que em um certo ponto desviou a atenção do aparelho e arriscou um diálogo:

- Oi. – disse com a mesma expressão de quem queria dizer “tchau”.

- Oi. - recrutou ela de forma hostil e irônica.

O diálogo entre os dois poderia ser uma ponte para eventuais tréguas, mas o contexto fazia com que Diego fugisse a todo momento de encarar Maria Clara porque sentia algo estranho. Enquanto isso, ela continuava com o olhar objetivo não de quem queria julgar, mas sim de punir, fazer justiça com as próprias mãos.

- Doendo muito? - arriscou novamente.

A jovem apenas acenou com a cabeça dizendo que sim, sem desfazer o olhar fixo que agora começava a assustá-lo. Contudo, a indignação de Diego por ter perdido o carro era maior do que qualquer culpa que poderia ou não existir dentro do jovem. Tamanha era esse sentimento de estagnação, que não o conteve dentro de si.

- Tudo beleza então – falou com um tom sarcástico – No final das contas foi só um susto. Espero que esteja feliz, por sua culpa acabei ficando sem o meu carro.

Maria Clara poderia ter bravejado de ódio, dirigindo-lhe as mais impronunciáveis e degradantes ofensas que já foram ditas na face da terra. O medo e o desespero lhe concederam a rara inteligência dos conformados, que nunca aponta uma resposta clara, mas que possui um efeito devastador para com algumas questões. A verdade é que as palavras que saíram de sua boca teriam mais impacto do que qualquer degradação, porque no fundo, eram verdadeiras, sinceras e inquestionáveis pelas leis da retórica e da ironia:

- Foi só um susto – respirou um pouco e começou a ficar com os olhos marejados e um tom de choro – Espero que esteja feliz porque eu estou viva, mas por sua culpa, perdi as minhas pernas – retirou o lençol que a cobria da cintura para baixo.

Diego preparou-se para contra-atacar. Entretanto, até a dialética do jovem rapaz teve de render-se para com aquela situação. Como ir contra um inimigo já vencido? Tentou refletir sobre o que sentia, analisando as possíveis explicações ou simplesmente procurando alguma outra preocupação em sua mente que o pudesse distrair daquele problema. A verdade é que simplesmente não conseguiu falar, depois de ver as pernas da jovem ainda envolta nos curativos, além das lágrimas que lhe caiam pelo rosto. Começava então o desabrochar das flores de angústia no pensamento, que por sua vez tinham mais espinhos do que pétalas e em nada eram belas. Restou-o apenas sair atordoado porta afora, trombando com médicos, enfermeiras ou quem quer que cruzasse seu caminho. Quando deu por si, estava recostado no carro, com as mãos apoiando a cabeça e ausente dos chamados do pai:

- Diego, o que aconteceu? - perguntou-o.

- Vamos pra casa agora. - respondeu ainda meio atordoado.

No quarto de hospital, o semblante de dor da moça começava a ceder espaço para o de cansaço. Já não doíam mais as pernas, os sonhos que se destruíram, quaisquer que fosse o futuro que lhe era reservado. Quantas coisas ela teria de vir a abrir mão? Como em um curto espaço de tempo teve seu sorriso mais alegre e suas lágrimas mais tristes? O que tornavam as coisas dolorosas era a esperança de que cedo ou tarde, tudo voltaria a ser como antes, mas era uma chama muito difícil de se manter acesa e aquele era apenas o início dos ventos da tormenta que a vida lhe reservava.

Do momento em que saíra do hospital e retornara para casa, o jovem não disse uma única palavra. Trancou-se no quarto e procurou pensar em qualquer outra coisa que não fosse referente a jovem. Durante os próximos três dias que se seguiram, não falou com ninguém ou sequer fez menção de sair de casa, apenas se trancou dentro de um purgatório preparado pela sua consciência e ali ficaria até conseguir a absolvição pelo crime que cometera. Durante duas semanas o jovem começava a perder sua identidade. Não era mais o rapaz festivo e animado que vivia sorrindo e experimentando todas as loucuras do mundo. Estava preso dentro de um profundo e torturante silêncio.

Aconteceu que dentro do período de reclusão de Diego, Maria Clara finalmente recebia alta médica, para que pudesse se recuperar em casa. Sua felicidade aparecia em um grau quase imperceptível, afinal, livrava-se da maca, mas era aguardada pela cadeira de rodas e as longas sessões de terapia para ajudar uma possível recuperação. Contudo, iria para um lugar familiar, que certamente lhe faria melhor do que aquele quarto que misturava os odores de tristezas e desinfetantes, santuário de suas memórias mais tristes até então.

Os amigos de Diego acharam por bem intervir na situação. Até mesmo porque a própria mãe do jovem já pensara em encaminhar o filho para uma psicóloga ou coisa do tipo. Sob inúmeras recusas, acabou sendo levado a força por Guto para uma boate no meio da noite em um bairro de classe média da cidade. O lugar estava cheio e a música eletrônica no volume máximo, o que deixava-o ainda mais atordoado, porque achara na paz do quarto um meio de equilibrar os conflitos de sentimentos e a tranquilidade de espírito, mas naquele ambiente, tudo refletia perfeitamente a batalha do lado de dentro de sua mente.

- Toma isso – falou Guto entregando-lhe uma bebida – Vai te deixar mais animado.

- Eu só quero ir pra casa cara. - falou Diego com um tom desanimado – não tou com animo pra festa.

- Deixa disso! Vem cá, a Raíssa está por aqui em algum lugar, tenho certeza que ela vai salvar a sua noite!

- Sem essa, eu ainda tou de caso com a Fani, então melhor não procurar mais confusão.

- Se eu te der dois bons motivos, você vem comigo?

- Cara, eu já disse...

- Vem ou não?

- Tá legal, se me der dois bons motivos, eu vou!

- Primeiro: acaso você pensou na Fani naquela noite em que estava na cama com a Raíssa?

- Legal, qual o segundo? - disse o jovem depois de respirar fundo.

- Olha para o camarote 17 da área vip.

De todas as coisas mais estranhas nesse mundo, uma das mais frequentes e comuns, é a ação de quando se falar em uma pessoa ausente, ela simplesmente surgir do nada. Nesse caso, depois de tanto falarem o nome da jovem, eis que Diego percebeu a presença da namorada, no andar acima da boate, quase sem fôlego, nos braços de um homem que teria idade para ser seu pai, senão avô. Sendo assim, decidiu usar a última porção de bom senso para evitar uma confusão e tomando a bebida da mão do amigo, retornou aos mesmos hábitos de antes.

- O velho Diego está de volta! - brandou o amigo ao vê-lo se dirigir em direção a Raíssa.

Mas as cicatrizes do jovem ainda não haviam curado por completo.

Tâmara decidiu passar aquela noite com a amiga. Para isso, saiu da faculdade direto para a casa de Maria Clara, onde haviam combinado de assistir a um filme que passaria na televisão. Quando chegou, viu que a amiga estava deitada na cama entregue à leitura de um livro que parecia ser interessante, mas que logo foi descartado para segundo plano.

- Como está amiga? - perguntou Tâmara enquanto a abraçava.

- Um pouco melhor – respondeu ela com muito esforço, tentando se elevar um pouco mais – e as novidades?

- Só as mesmas fofocas de sempre – disse sentando-se no canto da cama – e você, quando vai estar pronta para um passeio no shopping?

- Não sei. Daqui a uma semana começa a minha fisioterapia, mas andar mesmo. Não sei se vou voltar a fazer isso algum dia...

- O importante é ter fé!

- Se não fosse por minha família, você e o Henrique, eu juro que não saberia o que fazer...

- E quanto ao cara que te atropelou, foi preso?

- Nem me fale nesse cretino. Acredita que não teve um pingo de remorso do que fez? Estava mais afetado por ter perdido o carro do que quase ter tirado a minha vida.

- Esse cara é um perfeito mau caráter.

As duas acharam por bem mudar de assunto, até mesmo porque o filme já havia iniciado. Era bom começar a voltar aos poucos a normalidade a partir de algumas atividades. Também era essencial para sua recuperação que todos demonstrassem estar ao seu lado, isso porque é preciso mais força para se levantar uma pessoa, do que para derrubá-la.

Diego chegou em casa totalmente fora de si, devido ao efeito do álcool. Por sorte, seu pai estava em uma viagem de trabalho, caso contrário, seria outra enxurrada de repreensões e castigos. Embora não estivesse contente com aquilo, sua mãe mostrava-se mais conivente, já que via o filho recuperar o mesmo ânimo e energia que tinha antes que as coisas ficassem tão conturbadas. As imagens confusas o fizeram deitar na cama sem quaisquer preocupação ou remorso. Não sabia, mas tinha terminado com Fani, armado o maior escândalo com o acompanhante dela e por fim, ter vomitado no sapato de Raíssa depois de um longo e demorado namoro. Era bom estar de volta...

Uma outra ressaca no dia seguinte, fez o jovem despertar ainda mais tarde. Comia agora toda a quantidade que recusava durante o tempo de reflexão, e já havia esquecido completamente da jovem que vira no hospital. Entre corridas ilegais, bebedeiras e outros fatores da vida desregrada que tinha antes, Diego se sentia com tanto poder quanto possuía tempos atrás. Até que uma tarde, semanas depois de sua primeira festa pós-tragédia, recebeu um telefonema que mudaria sua vida para sempre.

Maria Clara tentava uma readaptação, mas era tudo muito difícil. Ainda estava fraca devido a internação médica recente, por isso, pouco se locomovia na cadeira de rodas sem que estivesse exausta de tanto esforço para com o braço. Contudo, havia Henrique para ampará-la, e ela começava a se sentir outra vez, com força para enfrentar todos os desafios do mundo, embora ainda fosse difícil suportar todos os olhares das pessoas, o passeio do casal pela praça naquela manhã foi de certa forma agradável. O sol tocava o terno rosto da moça, enquanto o vento balançava-lhe os cabelos. Escapou também um sorriso de felicidade que há muito tempo não se via.

Só que as coisas não terminaram tão bem como ela achava.

Henrique apareceu na tarde anterior ao dia em que ela iniciaria as sessões de fisioterapia. Tinha um semblante triste no rosto, que nada mais era do que outro duro golpe na vida da jovem. Sentou-se na cama onde Maria Clara estava, e tentava olhar para todos os lugares possíveis que não o fossem os olhos dela. Era algo difícil, porque acima de tudo, era culpa da sua própria fraqueza:

- O que foi amor – falou a jovem inclinando-se para ele – aconteceu alguma coisa?

- A gente precisa conversar... - mencionou

- Me conta, o que houve?

- Eu achei que ia conseguir contornar a situação, que tudo daria certo, mas...

- Mas o quê Henrique?

- Quando eu te conheci, você era alegre, cheia de vida. Era a pessoa perfeita com quem eu queria passar o resto da vida...

- Como assim “era”? - começou a ficar com os olhos cheios de lágrimas.

- Eu não sei se vou conseguir levar isso adiante, isso é, do jeito que as coisas estão...

- Você está querendo terminar?!

- A situação não pode continuar assim Maria Clara, eu não consigo.

- Você não consegue?! Acha que as coisas estão difíceis pra você?! Olha só pra mim Henrique, meu mundo está desmoronado diante dos meus olhos e é assim que você fica ao meu lado?!

- Acredite Maria Clara, as coisas vão ser bem melhor assim... Me desculpe. - saiu do quarto.

E em menos de um mês o mundo da jovem ruiu. Todos os seus sonhos haviam se convertido em um mar de cinzas que a afogava cada vez mais. Lágrimas depois, já não queria saber de se alimentar, deixando de lado todas as bandejas que lhe serviam. Fisioterapia era algo que passara a ser definitivamente um assunto fora de questão. A única coisa que a mantinha viva era um soro conectado ao seu braço, que jazia ali depois de lhe faltar força para removê-lo. Depois do episódio de tentar apressar a hora de sua partida cortando os pulsos com a lâmina de uma tesoura, a família viu-se obrigada a pedir ajuda a um psicólogo. O profissional, por sua vez, analisou bem o caso, mas não encontrou quaisquer esperanças de reverter o estado de Maria Clara sem o uso de remédios, e misturará-los com os medicamentos que já eram ministrados devido a operação poderia deixar as coisas em uma situação ainda mais crítica.

Contudo, havia uma esperança. Se a situação da moça era resultado de um choque psicológico, talvez outro choque de igual intensidade pudesse fazê-la voltar ao normal. Dentre todas as possibilidades, a mãe de Maria Clara sugeriu que ligassem para a casa do jovem que atropelou, já que muito provavelmente a raiva pudesse fazê-la acordar para um diálogo. O pai da jovem foi contrário à ideia no princípio, mas depois acabou vendo que não havia outro jeito.

- Com licença, acaso é da residência do senhor Saraiva?

- Essa sim – falou Diego – mas ele não está.

- E o filho dele se encontra?

- Sim, é ele. O que deseja?

- Bem rapaz, eu sou o pai da jovem que você atropelou...

- Olha senhor, já não tenho mais nada a ver com isso...

- Como não?! Por sua causa ela está do jeito que está, e além disso é sua obrigação!

- Se for dinheiro, já vou avisando que não tenho um tostão...

- Escuta ela está muito mal, e se por acaso acontecer alguma coisa com ela, a culpa é sua seu moleque irresponsável, então trate de vir aqui o mais rápido possível senão eu vou ai te buscar à força, entendido! - desligou o telefone.

E sua última esperança era o causador de toda aquela tragédia.

 

Continua...

 

Neudson Nicasio