Um conto atrasado de dia dos namorados (1ª parte)

16/07/2015 15:00

Era uma vez

    Muitas coisas aconteciam durante aquela noite de junho. Motivadas quem sabe, pelo fato de ser dia dos namorados e pelo ar de romance que essa data carrega. Um perfume doce que encanta alguns e provoca um certo enjoo para outros que por consequência do destino, ainda não tiveram a oportunidade de encontrar sua alma gêmea. A lua, embora ofuscasse as estrelas, começava a surgir do horizonte e a ser objeto de deleite dos casais apaixonados da praça que estavam aproveitando ao máximo cada segundo. O primeiro dos personagens desta narrativa não se encontra aqui, nesta praça. Nem fazendo declarações de amor para a sua namorada, e para piorar, nem com sua namorada...

    Naquele dia 12 estava marcado uma festa na casa na casa de Augusto, ou como era chamado pelos amigos: “Guto”. Os pais do jovem haviam viajado e o concedido a responsabilidade de cuidar da casa e manter tudo em ordem, mas não bastasse a própria vocação de Augusto para se desviar do pedido, contava ainda a influência dos quatro amigos: Pedro, Fabiano, Diego e Renato. Ambos estavam na faculdade de engenharia civil, mas dificilmente compareciam ou estudavam, porque achavam-se livres, intocáveis e imortais, que tinham por obrigação aproveitar tudo o que o mundo tinha a oferecer-lhes. Até aquela altura do campeonato, já tinham feito todas as irresponsabilidades possíveis de se imaginar para a adolescência, exceto cometer um crime. Pena que as coisas não ficariam assim por muito tempo.

    Naquele mesmo dia 12, Tâmara vivia uma situação crítica. Tanto preocupou-se com o namorado que acabou deixando a prova de Estatística em segundo plano. Sentia então vontade de sair correndo daquela sala a qualquer momento, sem pensar no que fazer depois, apenas fugir. Parecia que no papel, estava a aprender grego com um pouco de física, e previa muitos problemas caso outra nota ruim fosse parar em seu histórico. Restava então contar com sua amiga e colega da cadeira ao lado, Maria Clara, para que pudesse salvar sua vida acadêmica. Foram tantas as vezes que as duas se ajudaram, que uma a mais ou a menos, embora a situação fosse crítica, não causava qualquer oscilação de amizade. Uma vez com as respostas, restava torcer para que as aulas seguintes passassem rápido, o namorado a esperava do lado de fora da faculdade para aproveitarem o restante da noite.

    A festa começou então por volta das 8 da noite, tendo uma música eletrônica no volume máximo, um alto consumo de bebidas alcoólicas, um bando de pessoas que naquele estilo de vida mal passariam dos 35 anos de idade, além de uma liberdade desregrada. Cada integrante do grupo de amigos estava dedicadamente ocupado com uma importante tarefa para com seus princípios. Um assaltava todas as refeições da geladeira do anfitrião, outro já devia estar pela quinquagésima lata de cerveja, o restante ia dessas ações até outras tão ou mais degradantes do que essas que acabo de citar. Diego, por exemplo, estava no quarto dos pais de Augusto, lá pelas 22 horas, prestes a conseguir a oportunidade que tanto esperara de Raíssa. Seus dedos já estavam na alça do sutiã da moça, quando os amigos empurraram a porta do quarto de uma vez para dar a notícia:

- Diego cara, se liga! O Norberto tá lá fora te desafiando para um “pega”.

- Poxa! – disse ele como quem perdesse a paciência – Não dava pra dizer que eu tava ocupado, caramba!

- Pode ir Diguinho – falou a jovem – Eu fico te esperando aqui.

- Se a Fani souber o que tu tá aprontando aqui em cima... - falou Augusto.

- Até parece que “chumbo trocado dói”. - disse recolocando a camisa – vamos logo, detonar com aquele mané!

    Eram 7 e meia da noite quando o professor pediu que os alunos guardassem todos os materiais que não fossem utilizados na realização da prova, e aproximava-se das 9 quando o último dos alunos entregou sua avaliação. A turma finalmente estava dispensada para um breve intervalo, ao qual Tâmara usou para agradecer a amiga:

- Mais uma vez você salvou a minha vida miguxa... - disse ela.

- Amiga é pra essas coisas – disse sorrindo.

- E ai, o que o Henrique te comprou de presente?

- Não sei, mas ele já está fazendo mistério a um bom tempo, mal posso esperar... E o seu?

- Me esperando do lado de fora, e eu estou num pé e noutro para pular esse muro. Só que agora eu fiquei curiosa por ti. Será que ele vai te pedir em casamento?

- Tomara, desde que começamos a sair que eu sonho com isso...

    E a conversa continuou, sobre expectativas, realidades, fofocas, até retornarem a sala de aula, onde uma outra disciplina tão chata quanto a primeira às aguardavam.

    Diego e Norberto não se davam bem, isso porque ambos eram competitivos ao extremo um com o outro. A quem ganhasse os desafios restava a glória e o respeito dos amigos, ao perdedor restava a vergonha e a proposta de uma revanche que era sempre aceita, formando um ciclo conflitual infinito. A questão era que o desafiado estava com a vantagem e o desafiante ressentido de sua última derrota. Não é preciso citar o passado dos dois, apenas dizer que tinham nos olhos a mesma expressão de dois lobos antes de lutar pela liderança da alcateia.

- Tem gente hoje implorando pra apanhar – exclamou Diego ao ver o rival recostado no carro – e eu tou morrendo de vontade de dar uma surra em alguém...

- Falar muito – zombou o outro – Típico de quem não faz nada. Vai acabar comendo poeira depois da incrementada que eu dei no motor.

- Nem que tivesse um turbo, essa carroça ia me alcançar. - entrou no carro - Vamos logo que eu estou com pressa!

    Os dois então posicionaram-se no meio da rua. Quase todos os que estavam na festa foram para fora, prestigiar a competição. Os motores roncavam alto, fazendo o público ir ao delírio na mais completa euforia. Diego estava confiante, embora as sete latas de cerveja houvessem lhe concedido tanto um ego irritante de alguém que pensa ser a pessoa mais incrível do mundo, quanto uma visão vertiginosa da realidade que piorava a cada segundo. Em resumo, os estilhaços de uma garrafa de bebida jogada ao chão foi o tiro de partida, seguido do canto dos pneus e de uma estrada incerta que se fazia adiante.

    Quando o professor dispensou a turma, Maria Clara começou a sentir-se apreensiva pelo encontro com Henrique. Pensou em falar com Tâmara, mas essa deu a desculpa de estar com dor de cabeça para sair uns 20 minutos antes do fim da aula e encontrar o parceiro que a aguardava. Casamento, essa era a ideia que pairava sobre a cabeça da jovem. Se a amiga estivesse certa, seria quase um sonho realizado, afinal, Maria Clara amava Henrique mais que tudo no mundo. Aquele era o homem para o qual ela decidira não somente se entregar por inteira, como também constituir uma família. Depois que passou dos portões da faculdade, encontrou o casal ainda entre beijos e abraços. Tâmara então convidou ela e alguns outros amigos para comerem uma pizza em algum lugar que por ventura estivesse aberto. A princípio a jovem recusou o convite, mas depois da insistência do grupo ela acabou cedendo. Poucos passos depois, seu celular acabou tocando. Era ninguém menos que seu namorado, os amigos sugeriram e ela acabou convidando-o também para a confraternização. Henrique disse que os aguardaria no local. E o grupo seguiu, entre conversas e brincadeiras e um estranho calafrio que atravessou a espinha de Tâmara, dando lhe uma certa vontade de chorar...

    Como Diego já esperava, o carro de Norberto estava bem atrás do seu. Começava a deixar de ser uma competição e se tornava apenas diversão, ele contra o relógio. Pisava forte no acelerador e ria consigo mesmo da velocidade em que se encontrava, embora vez ou outra sentisse o carro fazendo um leve zigue-zague que o acordava de volta a realidade. A vitória estava certa, mas ao invés de ir mais devagar e concentrar-se em ficar na rua, acabou acelerando ainda mais, pisando no freio apenas em uma curva um pouco fechada que ficava próxima ao prédio da faculdade. Quando encontrou-se mais a frente, pisou rapidamente no freio para que o carro derrapasse e favorecesse a realização de outra curva fechada. O movimento fez com que o jovem sentisse que o cérebro estivesse solto dentro da cabeça e isso acabou fazendo com que ele não percebesse quase nada do que estava a acontecer. Apenas viu as luzes do painel girando, o som dos pneus arrastando no asfalto, uma pancada seguida de um vulto luminoso por causa dos faróis e por fim um monte de gritos estridentes e desesperados. Conseguiu sair do veículo tendo de se apoiar no mesmo porque mal se segurava em pé. A última visão lúcida daquela noite foi um monte de pessoas ao redor de uma outra que estava caída na rua, com um leve filete de sangue que saia dos lábios e com os olhos fechados. Não teve oportunidade de ver se era ou não um rosto conhecido, quanto menos de ter consciência do que acabara de fazer. Sentiu que a gravidade começava a ficar mais forte e desabou no chão, apagando no mesmo instante.

    Boa parte do que conversaram no percurso até a pizzaria, era referente a prova que foi aplicada a bem pouco tempo atrás. Obviamente aquele era o momento em que todos sabiam das respostas que deveriam ter dado, mas não resistiram ao grito do nervosismo. Todos estavam preocupados com o desempenho, exceto Maria Clara. Era uma excelente aluna sob todos os aspectos, quer fosse na inteligência, quanto na frequência e pontualidade, um verdadeiro exemplo a ser seguido. Não que essa houvesse gabaritado a prova, mas tinha a plena confiança de que conseguiria uma nota razoavelmente boa. Entretanto havia uma pequena fissura na calçada, que fez com que a jovem tropeçasse e deixasse cair o celular. Um dos amigos que lá estavam, acabou falando que aquilo era um mau-presságio, mas como não eram supersticiosos, resolveram conceber a opinião como uma espécie de piada. Enquanto apanhava os pedaços, pediu aos amigos que continuassem andando, alegando que logo os alcançaria. Por fim, eles cruzaram a rua e lá a esperaram, porque ainda não havia encontrado a bateria do aparelho. Tudo pareceu retornar a seu devido lugar quando Maria Clara se recompôs e correu em direção aos amigos. Era uma noite sem quaisquer tráfego de veículos, e isso possivelmente contribuiu para que ela não olhasse para os lados antes de atravessar a rua. Havia um barulho ao longe, como um ronco de um motor, tinha também uma luz fraca na parede de algumas lojas a frente, provocadas certamente por um farol de algum carro distante. Quando os pés da jovem tocaram a faixa de pedestres, foram quase que instantaneamente arrebatados pela frente de um veículo que vinha em alta velocidade. Dai em diante, tudo o que ocorreu foi um barulho pouco estranho de se ouvir, como se alguém esfarelasse uma folha seca em um tom extremamente alto e um clarão ofuscante, seguido de uma escuridão profunda e sobrenaturalmente silenciosa...

    Foi em um 12 de junho de um ano impreciso que os caminhos de Diego e Maria Clara cruzaram-se pela primeira vez...

 

Continua...

 

Neudson Nicasio