Quinta, o dia em que as paredes tiveram ouvidos

24/03/2015 15:08

            Choveu muito nesta última Quinta-feira. Não de forma tão intensa que provocasse outro dilúvio,  nem tão calmamente que permitisse um sono tranquilo.

            As gotas que caiam lá fora acabaram formando um mar de tédio que me deixou solitário numa ilha cheia de pensamentos e ausente de quaisquer inspiração que me levasse a escrever algo útil para o mundo. Levantei-me então da cadeira e comecei a andar pela casa e no limite de minha sanidade mental, a conversar com as paredes.

            Em uma primeira visão crítica e fortemente baseadas nas teorías psiquicas contemporâneas, falar com as paredes é coisa de louco. Embora tudo estivessem bem, já que um louco sozinho é um normal à parte. Um dos primeiros privilégios de se começar uma boa conversa, não trata-se de conhecer o outro participante do diálogo, e sim de construir algum assunto do nada para converter o desconhecido ao conhecido. Foi quando uma reclamação que deixei pairando no ar, atravessou a dispensa (que não fala) e colidiu com a parede da cozinha.

- Que pena não ter ninguém para conversar...

- Entediado novamente Diego? Se continuares a andar assim acabarás desnivelando o piso.

- Não tem problema, para qualquer caso chamo o pedreiro e ele há de consertar a situação.

- Quero distancia daquele homem. Ainda tenho as poucas cicatrizes da última visita dele.

- Definitivamente não lhe seria um marido exemplar, além do que, não gostei muito do que ele fez na casa. Acho que precisa de outra reforma.

- Você também precisa de reforma sabia?

- Até que uma mudança seria boa, isso é, faz tempo que não corto o cabelo ou faço a barba...

- Não é disto que estou falando. O que realmente quero dizer é que você precisa de umas cinco ou seis pessoas lhe dando marteladas e lhe arremessando cimento por três dias seguidos.

- Em que isso me ajudaria?

- A parar de desejar isso para os outros. Tem ideia do transtorno que é quando um de nossos donos decidem fazer reformas?!

            Sentei-me a mesa da cozinha e me servi de uma xícara de café. Aquele era um ponto interessante porque havia dois meses que havia instalado-me na casa verde da rua das Quatro Estações de número 206. Tudo o que eu sabia a respeido dela é que surgiu em meu caminho através de um anuncio no jornal e que o antigo dono era um mestre de obras que vivia aqui com a família, mas viram-se obrigado a irem para outra cidade devido uma oferta de emprego. Entretanto, seu estilo um tanto rústicos com materiais do século passado me levaram a entender que ela já existia a muitas primaveras...

- Quando você foi construida? -  perguntei-lhe.

- Por volta de 1902 ou 1903. - respondeu.

- Então você já deve ter visto bastante coisa ao longo do tempo, afinal, estamos em 2007.

- Insinuas que sou velha?

- Mais do que minha avó, mas fique tranquila que ela é até deveras simpática.

- Só não recruto-lhe as piores ofensas, porque esta é a primeira vez que você nos ouve e eu gostaria muito de saber notícias do mundo.

- E desde quando você fala ofensas?

- Aprendi alguns palavrões com um alcoolotra que morou aqui um tempo, pelo menos comigo sempre foi respeitoso. A parede do banheiro é que nunca deu-se bem com ele já que sempre ele errava o vaso quando estava com a beixiga cheia.

- Obrigado por escolher não ocultar esses detalhes enquanto tomo meu café. - recrutei irônico.

- Recomponha-se e conte-me o final da novela das nove.

- A mocinha descobriu que o pai era rico, o vilão morreu caindo de um penhasco e aquela que parecia morrer encalhada acabou ficando com o palhaço da trama.

            A ausência de resposta da parte dela me fazia crer que o final não havia correspondido para com suas expectativas, embora a verdade é que ela estava prestando atenção na discussão dos vizinhos. Aproveitei que tudo continuava parado para descobrir um pouco mais a respeito da casa:

- E quanto ao primeiro morador? Vocês conviviam bem?

- De forma melhor creio ser impossível, embora só tenha residido aqui por cinco anos foi o dono mais zeloso que eu e os meus irmãos e irmãs tiveram. Pena que teve de nos vender para saldar uma dívida em tempos difíceis.

- Sente falta dele?

- Volta e meia sim, fico pensando no que terá ele feito da vida, embora seja pouco provável que ainda esteja vivo.

- Entendo. Vou caminhar mais um pouco porque esse frio está deixando meus pés dormentes, volto logo.

            Levantei-me ainda com a xícara de café e fui para a sala. Observei que atrás do sofá tinha um rabisco estranho, que só pude traduzir como um desenho de um carro numa estrada, feito com giz de cera e muito mal colorido. Obviamente obra de uma criança hiperativa para não dizer levada.

- Gostou da tatuagem? - perguntou a parede da sala.

- Bem criativa – recrutei – Escuta, isso já está ai há muito tempo?

- Um pouco, mas o que me orgulha não é nem tanto o desenho e sim o fato do moleque que desenhou isso ser hoje um famoso pintor.

- Até que ele leva jeito para a coisa. Fica tranquilo que daqui à próxima semana eu ponho uma mão de tinta.

- Nem pensar, algum dia vão me descobrir como um importante registro artístico, quando alcançar esse ponto terei um valor financeiro quase inestimável, possívelmente vou ficar exposto em algum museu e finalmente conhecer aquela mulher sensasional exibida no Louvre de Paris.

- Que mulher?

- Gioconda

- Vulgo “Mona Lisa”.

- Excepcional, não é?

- Não me leve a mal, mas acho que ela é um pouco velha demais para você.

- Aquela mulher que você trouxe aqui na semana passada também parecia velha demais para você.

- O sofá e o desenho ficam como estavam antes, assunto encerrado?

- Certo.

            A natureza convocava-me para necessidades primárias das quais é melhor atender o mais rápido possível. E encerrado o processo, estava no cômodo mais injustiçado da casa, o banheiro. Devido às curtas dimensões, as paredes eram mais próximas das outras do que nos demais lugares da casa, por isso raramente conversavam em voz alta, grande parte das vezes eram na verdade sussurros quase incompreensíveis.

- Esqueceu de abaixar a tampa do vaso – disse uma.

- Só isso? Não tem mais ninguém aqui para se incomodar...

- É mais costuma ficar um cheiro desagradável.

- Além de dar a descarga eu joguem um pouco de desinfetante, além do que, não fiz a necessidade de número 2 e sim de número 1.

- Precaução. Há anos que uma pessoa com o esse mesmo costume seu morou por aqui, e digamos que ela no banheiro era um atentado violento aos princípios básicos da higiene.

- Grande parte das infiltrações que temos foi causada por entupimentos do vaso por parte desse indivíduo. - disse uma outra.

- Prometo consertar antes do fim de semana. Mas em todo caso é bem difícil a vida de vocês...

- Nem tanto – disse uma terceira um tanto metida – Acho que você iria gostar de ser um bloco imóvel como a gente nos tempos em que morava uma bela jovem aqui.

- Faz muito tempo? - perguntei.

- Algumas décadas.

- Vou deixar passar essa. Mais escuta aqui, acaso ficava observando ela tomar banho.

- Sem julgamentos, o concreto pode parecer forte mas tem lá suas fraquezas.

            Despedi-me então um pouco perplexo com aquela parede pevertida. Passei direto pelo quarto, temendo que se falasse com as paredes de lá, ouvisse relatos um pouco mais sórdidos de episódios envolvendo casais e suas intimidades, então retornei para o ponto de partida: a cozinha.

- E então, já se sente melhor?

- Um pouco, vamos dizer que vocês até que são interessantes, embora para algumas faltem um pouco de bom senso.

- Eu estou ouvindo! - gritou a parede do banheiro.

- Desculpe, aqui nós literalmente temos ouvidos. - recrutou a parede da cozinha.

- Vou lembrar disso – respondi – Se não se importa, vou escrever um pouco, acho que já tenho uma ótima história para contar.

- Você e suas histórias...

            E aos poucos eu mergulhava na noite, sentindo minha imaginação se personificar e encarar a tempestade que estava lá fora como um lobo que enfrenta a tormenta em busca de uma aventura, lendas, mistérios, e tudo mais. E isso se desenhava em meio as letras e ao som dos “clicks” da máquina de escrever. Tudo agora fazia barulho, a chuva, as paredes, o aparelho de escrita, algum grilo escondido num móvel qualquer até que pouco antes das duas da madrugada coloquei o ponto final na história.

- Finalmente! - exclamei – acho que devia ouvir mais vocês, são uma ótima fonte de inspiração.

- Igualmente. - recrutou ela – sempre que precisar estaremos a disposição.

            Foi então que acabei despertando. A verdade é que em algum momento enquanto pensava no que criar, comecei a imaginar coisas, imaginação essa que evoluiu para sonho e enquanto minha mente viajava pelo mundo das ilusões, meu corpo físico babava sob a manga da camisa quando usava meu braço para apoiar o rosto. Não havia quaisquer desenhos na parede, a louça ainda estava suja, e nada de vozes além da linguagem natural da chuva. A verdade é que tentei dormir para tornar tudo tudo aquilo uma dessas memórias sem importância que vagam pelo nosso subconsiente, mas depois de um certo tempo desisti. Antes de esquecer, tinha algo de maior importância: recordar qual era a história que tinha criado no sonho. E essa foi uma das noites mais longas e interessantes da minha vida...

 

Neudson Nicasio